Histórias, ideias, memórias, narrativas...
Alessandra Rodrigues
"A única maneira de contar uma história é voltar ao mesmo lugar repetidas vezes; é nessa dialética que se evolui".
Sebastião Salgado.
O contexto e o tempo: entre o formal e o não formal, portas abertas ao narrar e à reflexão
Pensar em espaços informais ou não formais de educação e relacioná-los aos espaços formais, ao currículo e às tecnologias foi o desafio com que me deparei no primeiro semestre de 2014, na disciplina "O digital, o currículo e a formação", do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo.
Eis a minha narrativa dessa aventura, que inicio com a ajuda de uma outra história...
Quais são os tempos do aprender? Como esses tempos se dissolvem em contextos diversos? O tempo é mesmo um elemento estruturante do currículo escolar? E nos espaços não formais de educação?
No tic-tac dos relógios antigos, o trecho da história de Felipe, personagem do livro de Rubem Alves, ilustra a relação que mais me marcou durante a visita ao Museu da Vida, no Rio de Janeiro: o tempo e o contexto.
Mas antes de apresentar minhas inquietações advindas dessa relação, quero contar um pouco mais sobre o começo dessa história...
Desde o início da disciplina, havia combinado de realizar a visitação com a colega Kátia Gonzaga. Já havíamos conversado sobre possíveis lugares, mas até a semana do dia 10 de abril não tínhamos chegado a uma definição. Nesse dia, sentimos que já estávamos atrasadas e ficamos meio tensas. O que foi ótimo, porque esse sentimento acabou nos impulsionando.
Depois de muita conversa, troca de e-mails, pesquisa e das leituras sobre o conceito de CONTEXTO, finalmente decidimos: nossa visitação seria feita no Museu da Vida!
Kátia agendou a visita para o dia 17/04 e lá fomos nós rumo ao contexto escolhido; que, na verdade, são muitos num só. Pelo menos foi com essa ideia que tive após ter acessado o site do Museu:
Com o protocolo de visitação, câmera fotográfica, celular, tablet e muita curiosidade... Fomos a campo!
Tempo e liberdade
Parque da Ciência
O primeiro espaço do Museu ao qual tive acesso, antes mesmo de chegar ao Centro de Recepção, foi o Parque da Ciência.
Olhando mais de perto, a impressão inicial se confirmou nos três espaços do Museu que visitei: o Parque da Ciência, o Espaço Passado e Presente, e o Espaço Ciência em Cena.
O Parque é um espaço ao ar livre em que estão espalhados diversos experimentos e esculturas ligadas aos conhecimentos da Física e da Biologia. O visitante fica livre para explorar o espaço, que conta com tótens explicativos em cada experimento/escultura.
Enquanto passeava pelo espaço, fiquei pensando como ele poderia ser um contexto educativo e que intencionalidade estava representada na disposição dos elementos pelo Parque, na escolha dos textos a serem escritos nos tótens, na seleção dos experimentos.
Relacionando essas indagações com as categorias conceituais que tentamos eleger numa atividade em grupo realizada em sala de aula, o Parque da Ciência me pareceu importante para exemplificar as categorias "Percepção", "Circunstâncias" e "Predisposição". O espaço (que se configura como um aspecto da categoria "circusntâncias"), por ser amplo e aberto, não remete ao contexto tradicionalmente associado aos museus. Assim, ao mesmo tempo que liberta os visitantes de um sequenciamento obrigatório dado pelas visitas acompanhadas e/ou pela arquitetura das construções, também requer a predisposição do sujeito à interação com os elementos desse contexto e à capacidade de percepção do visitante relativamente aos conhecimentos veiculados em cada experimento/escultura.
Nesse sentido, as contribuições de Bernstein sobre as relações entre contextos e no interior de um contexto podem ser importantes para desenhar esse primeiro contexto de visitação, que me pareceu ter sido pensado com a intenção de deixar o visitante livre para escolher, testar e aprender conforme seus interesses, sua cultura, sua história. Assim, as relações entre o contexto pessoal dos sujeitos e o contexto educativo do Parque são aproximados sem que um necessariamente de sobressaia.
Sem o tic-tac apressado, o tempo estende-se nesse espaço e convida à exploração, à curiosidade, ao aprender. Felipe, "nosso" personagem (emprestado de Rubem Alves) gostaria que sua escola fosse um pouco mais parecida com isso...
Pensei sobre tantos assuntos durante o passeio, enquanto lia as informações nos tótens e brincava com os objetos, e nenhum deles estava "engavetado" como num canal de televisão. Ou como no currículo escolar...
Tempo de conhecer pessoas
A nossa visitação foi planejada para acompanhar um grupo de jovens estudantes participantes de um dos programas do Museu da Vida voltado às comunidades de seu entorno: as favelas de Manguinhos, Alemão e Maré. Trata-se do Programa de Produção Cultural em Divulgação Científica.
O Programa atende estudantes do Ensino Médio das escolas estaduais dessas localidades e tem a intenção de colaborar com a formação desses jovens para inserção no mercado de trabalho. Os estudantes realizam atividades em diversos módulos que oferecem noções práticas de produção cultural, também assistem a palestras e participam de minicursos sobre temas atuais ligados à saúde, cidadania, cultura e ciência. Este foi o grupo que acompanhamos:
Mas nem tudo é liberdade... O tic-tac do tempo está sempre à espreita...
Antes da visitação, Kátia e eu fomos recebidas por uma das pedagogas do Museu, Carmem Evelyn Rodrigues Mourão. Nossa conversa com ela teve a intenção se conhecer melhor a proposta do Museu considerando os itens de nosso protocolo de investigação.
Não conseguimos! Carmem nos recebeu muito bem e estava tão animada que não pudemos perguntar muita coisa. Ouvimos o que ela quis nos contar com pequenas interrupções para esclarecer algum ponto ou tentar levar a conversa para nosso foco de pesquisa. Ainda assim, informações importantes puderam ser levantadas sobre as intenções do Museu, seu foco, público, conteúdos abordados etc.
Segundo as informações de Carmen, os diferentes espaços são o "carro chefe" do Museu da Vida, que se configura como um espaço de ciência, cultura, saúde e arte. Além da preocupação com o conhecimento, o Museu preocupa-se com os sujeitos do entorno de seu território (especialmente as favelas já mencionadas). Por isso, oferece vários programas de formação, inserção social e cultural. Como exemplos, ela citou o "Encontro de Professores" (atividade que acontece duas vezes por mês e compreende uma apresentação geral do Museu e visitação voltada à formação de docentes da rede pública do Rio de Janeiro) e o Sábado das Famílias (em que o Museu se abre às famílias da região para visitação e atividades culturais). É importante salientar que o Museu não cobra entrada para nenhuma atividade.
O setor educativo do Museu, segundo Carmem, é responsável pelas atividades e programas desenvolvidos com as famílias, os estudantes e os professores. Além disso, atua na concepção das exposições e apresentação dos conteúdos nos diferentes espaços do Museu. Também desenvolve atividades na creche da Fiocruz e tem diversas publicações (livros, manuais, Cds, vídeos) voltadas à educação (especialmente do público infanto-juvenil) abordando temas nas áreas de saúde, história, biologia etc.
Algumas frases também ilustram a proposta e a intencionalidade do Museu da Vida no que concerne à educação:
"Todos os espaços são pensados na perspectiva do diálogo. Não temos 'guias', temos 'mediadores' porque a visita deve ser um momento educativo e interativo. Nossos mediadores são pedagogos, biólogos, físicos, historiadores e professores dessas áreas. Também podem ser estagiários bolsistas vindos de cursos de graduação nessas áreas".
"Nos espaços, a ideia é que não haja só exposição, mas interação. O Museu da Ciência, por exemplo, tem a intenção de fazer os visitantes entrarem em contato com os conteúdos e exposição de forma lúdica, divertida e dialógica. Há vários espaços para experimentação e a tecnologia ajuda".
"Trabalhamos com a ideia de que museu não é para 'passar conteúdos'. Não é para garantir aprendizagem de conteúdos específicos. Se o visitante sair com mais perguntas do que entrou, teremos cumprido nosso trabalho".
"Dos nossos cinco espaços, o mais tradicional é o castelo. Por isso, para as crianças foi criada a atividade "avental de histórias", em que uma professora conta a história da construção do Pavilhão Mourisco (castelo) e partes da biografia de Oswaldo Crruz usando fantoches saídos de um grande avental. É uma forma de dar movimento e ludicidade ao espaço estático".
Mas nossa conversa foi curta. Interrompida pela premência do tempo!
Era hora de visitar os dois espaços agendados do Museu...
Um espaço-tempo quase escolar...
Espaço Passado e Presente
Nesse espaço do Museu, um castelo imponente instiga à visitação, mas o cronômetro é implacável!
Logo que entrei no castelo, pensei: "Que maravilha! Como alguém pode ter pensado em construir isso no Brasil do comecinho do século XX para fazer ciência?". Pronto! A curiosidade epistemológica de que Paulo Freire tanto falou estava aguçada.
Mas, ao subir as escadas para o segundo andar, notei o silêncio de nossos jovens acompanhantes (do Programa de Produção Cultural) e decidi puxar conversa com uma das meninas. Stephanie está no terceiro ano do Ensino Médio e me explicou que o grupo não pertencia às mesmas escolas nem estavam todos na mesma série. Haviam feito inscrições e sido selecionados no processo seletivo para o Programa.
A postura dos jovens me lembrou um outro trecho de "Pinóquio às avessas" em que Felipe estranha as filas e o enquadramento exigidos pela escola. Mesmo estando num espaço não formal, os jovens reproduziam as atitudes de silêncio e ordenamento típicas dos contextos formais de educação.
A visita, guiada por um mediador estudante de História, transcorreu à semelhança de uma aula expositiva num espaço que não a "sala de aula".
Os jovens praticamente não fizeram perguntas, interagiram muito pouco com o mediador e entre si. Também não usaram celulares para filmar ou fotografar os espaços, apesar de isso ter sido permitido e em alguma medida (pela fala do mediador) até incentivado antes de entrarmos no castelo.
Mostravam-se ora interessados e curiosos, ora indecifráveis em relação ao interesse pelo ambiente e pelas explicações. E o tempo?
Esse sim foi um elemento definidor da interação. Fomos levados de um ambiente ao outro do castelo sempre tendo como referência o "tempo da visitação" (que associei inevitavelmente ao "tempo da aula").
Mas o quarto andar era diferente...
Diante do curioso e misterioso quarto andar, os jovens se animaram um pouco mais. Afinal, além de idealizar um castelo para a Ciência, Oswaldo Cruz ainda teve a engenhosidade de construir um andar quase "invisível", com janelas apenas voltadas para o interior da construção, para servir de estúdio de revelações fotográficas e alojamento para funcionários.
Dois dias era o tempo máximo permitido pelo cientista para pernoite no castelo. Exceção concedida apenas a Albert Eisntein, que se hospedou no quarto andar por uma semana!
Novamente o tempo ronda essa minha história e as histórias que ouvi e vi no Museu. Diante da pergunta de um jovem sobre "Quem é esse Eisntein?", o mediador limitou-se a responder: "Foi um físico famoso". A sintética resposta teria sido consequência do nosso tempo escasso para cumprir o programa de visitação?
Assim como na escola a professora de Felipe desconsiderou seu interesse genuíno pelos pássaros porque eles não estavam no programa de Português e não havia tempo para exceder os limites do programa, no espaço não formal do Museu também não houve tempo nem lugar para ampliar as discussões sobre Eisntein, ou sobre a engenhosidade de Oswaldo Cruz, ou a respeito da teimosia de um cientista que foi ridicularizado pelos jornais por vacinar as pessoas contra a febre amarela, ou sobre a coragem desse visionário que viu na construção de um castelo uma forma de chamar atenção para a pesquisa científica num Brasil de população analfabeta e ignorante.
Pergunto-me: por que os conhecimentos são fragmentados e até descontextualizados também nos espaços não formais de educação? Por que, na distribuição dos tempos de ensinar e aprender, a prioridade é garantir "conteúdos mínimos" e não a vida associada a esses conteúdos?
Na esteira desses questionamentos, entra também a tecnologia, que não se integrou à visitação, assim como dificilmente se integra ao currículo escolar...
Só quando saímos do castelo e ficamos aguardando as orientações para seguir até o próximo espaço de visitação é que os jovens "sacaram" seus celulares para fazerem algumas selfies e postar nas redes sociais. A sensação que tive foi a de ver materializada a descontextualização. É como se o "tempo do conhecer" não fosse o "tempo do integrar" os conhecimentos à vida, nem o "tempo de inserir-se" no processo da construção do conhecimento. Os sujeitos não se sentiram à vontade para fotografar-se dentro do espaço do conhecimento, mas o fizeram do lado de fora do castelo.
Não seria esse um reflexo da educação formal, que ainda distancia as práticas sociais de uso da tecnologia do uso dos recursos tecnológicos para aprender? Ou que fragmenta o tempo e o espaço como se fosse possível aprender apenas num tempo e num espaço formalizados? Mais questões para as quais nao tenho resposta, mas que a fala de dois dos jovens ajuda a ilustrar: "Não usamos muito a tecnologia na escola para pesquisar. Às vezes fazemos pesquisas na internet em casa e usamos para estudar. Agora a gente estava fazendo as fotos pro Face".
Espaço-tempos diversos: entre o formal e o não formal
Espaço Ciência em Cena
A integração de arte e ciência permite neste ambiente a visualização de diferentes espaços, tempos e formas do aprender...
O espaço Ciência em Cena tem um anfiteatro com experimentos interativos, uma sala de projeção e um ambiente interativo (Laboratório de Construção de Imagens) cheio de experimentos livres e autoexplicativos. O espaço tem exposições temporárias com diferentes temáticas, mas todas buscam a interface entre arte e ciência. No dia de nossa visita, estava acontecendo a "Oficina Cores".
Os vídeos abaixo mostram um pouco do que aconteceu durante a visita no ambiente de projeção e no laboratório:
Durante a atividade com exibições de slides, ficou claro o interesse dos jovens pelo que o mediador explicava. Mas a participação e disponibilidade vinham vinculadas às ações dos jovens com o uso de pláticos coloridos para exprimentar alterações das cores projetadas ou quando contavam algo de suas vidas que remetia ao tema da apresentação do mediador.
O tempo do aprender nesse espaço foi ditado também pelo tempo necessário à transmissão dos conteúdos selecionados, à semelhança da escola.
No segundo espaço, autoexplicativo e com múltiplas opções, a autonomia e a curiosidade dos jovens para explorar o espaço deixaram o tempo mais elástico, como no primeiro espaço do Museu que visitei.
Cada um a seu tempo, explorando e experimentando, repetindo e tentando quantas vezes fosse preciso para entender o conceito de cada experimento, o jovens se soltaram. Ouvi suas vozes animadas, rindo. E pela primeira vez eles se sentiram à vontade para fotografar e fotografar-se utilizando os celulares.
Os "conteúdos mínimos" estavam presentes nos experimentos. Mas era preciso testá-los, experimentá-los, vivenciar o conhecimento para significá-lo.
Ficou claro ali que o aprender depende de tempo, e que o tempo do aprender precisa ser aliado do processo de construção de conhecimentos.
E COMO TERMINA ESSA HISTÓRIA?
Dizem que as boas histórias sempre nos deixam com uma pontinha de dúvida sobre o porvir após o derradeiro ponto-final. A visita ao Museu da Vida, as discussões feitas durante os encontros da disciplina e as reflexões proporcionadas pela elaboração desta narrativa me deixaram com essa sensação.
Se esta minha história foi boa? Isso dirão os leitores...
Eu, certamente, passei a olhar os espaços não formais de educação como essenciais à reflexão sobre a escola e a educação formal. Mas passei também a perceber interfaces e semelhanças entre esse espaços (mais do que imaginei encontrar), especialmente quando se trata dos tempos do aprender.
Retomando as perguntas com que iniciei esta narartiva e tentando respondê-las brevemente, penso que os tempos do aprender são muitos e se dissolvem nos contextos de diferentes maneiras, interferindo nos próprios contextos. O tempo é elemento estruturante do currículo e do contexto, transforma-os, delimita-os, quase se personifica e age sobre eles.
As tecnologias digitais de informação e comunicação, por sua vez, atuam diretamente sobre nossa noção de tempo e espaço. Por isso, precisam integrar-se aos tempos do aprender ampliando-os e também estendendo-os a espaços outros (para além das salas de aula). Como fazer isso?
Eis o desafio, o porvir após o ponto-final.